Eis o texto que foi publicado por mim na edição desta semana do jornal "Primeira Linha". Com a devida vénia:
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Exmo. Senhor
Dr. Eurico Heitor Consciência
Permita-me que lhe escreva esta carta – uma carta aberta.
Tenho lido regularmente os seus textos publicados sobre as autarquias, os gastos que fazem, as reclamações, exigências e choradinhos dos autarcas. Além disso, muito aprecio a forma como escreve, com rigor e humor.
Apesar de ser autarca, cada vez mais acho que os seus escritos são importantes, actuais, incisivos e para serem levados a sério.
Muitos autarcas – a larga maioria dos que conheço, que vão desde o PSD à CDU, passando pelo PS – tem preferido a via fácil de aplicar os dinheiros recebidos em obra que gera votos.
Há excepções, bem o sabemos, infelizmente poucas. Mas, em geral, todos fizeram “inchar” os seus pequenos feudos e têm assegurado reeleições sucessivas.
Mesmo a CCDR (que gere em Lisboa o bolo financeiro que é repartido pelas autarquias da nossa região) vangloria-se da elevada execução dos quadros comunitários de apoio. Quantidade nunca foi sinónimo de qualidade.
O que é preciso é que se gaste depressa e muito. Gastar “bem”, com qualidade e utilidade, à escala do concelho, com critério de auto-sustentabilidade, com planeamento de necessidades efectivas, percebendo as vantagens e inconvenientes, a relação custo-benefício para as comunidades, são características muito relativas. Como resultado, há equipamento que se têm replicado como cogumelos, conduzindo as autarquias para a asfixia.
Os autarcas defendem-se alegando que a melhor avaliação do seu trabalho são os votos do povo e que se este os reelege é porque houve satisfação de necessidades. O cliente satisfeito é fundamental, nas modernas teorias da qualidade.
Há coisas que não se devem dizer, do género “o povo não é clarividente e deixa-se comprar” ou “o povo quer é pão e circo” ou ainda que “o povo não sabe decidir porque não é maioritariamente esclarecido”. Dizer isto cai mal – mas é genericamente verdade (pronto, lá se foram muitos dos eleitores que votaram no projecto que sustentei no ano passado).
As pessoas vivem indiferentes aos milhares de rotundas do país, às centenas de Estádios Municipais e piscinas, aos incontáveis espaços pedonais e de lazer, aos equipamentos culturais cheios do vazio de formação e programação, às centenas de festas gastronómicas e tradicionais dos seus concelhos (todas decalcadas umas das outras), às rotundas com oliveiras replantadas, aos campos de futebol (e de basebol?!?), à festa e farronca contínua. O Estado até dá o exemplo, com os Estádios do Euro, o aeroporto da OTA, o projecto do TGV e outras ambições similares.
Conheço presidentes de Junta cuja actividade anual se resume a manterem os cemitérios das suas terras abertos em horário prolongado, pagar o almoço anual aos velhinhos reformados e umas excursões à praia para os mais carenciados. Escusado será dizer que ganham todos eleições.
Em geral, as pessoas gostam de viver acima das posses e preferem pensar que o dinheiro gasto nessas obras não era seu – era do Estado. Nem elas sabem o que é essa coisa a que chama “Estado” e qual o papel do cidadão nele. Para todos os efeitos, era dinheiro do Estado e, “se não fosse para ali canalizado, provavelmente era estragado em coisas inúteis fora da nossa terra”.
Na realidade, todas estas obras são financiadas com impostos directos e indirectos cobrados junto de cada um de nós, projectando para o futuro milhões de euros (milhões de contos) de despesas correntes e, por isso, partilhando com os cidadãos a responsabilidade da sua execução.
Algumas dessas obras – nem todas! - são importantes mas não podem ser exclusivas.
Onde estão os investimentos reprodutivos, aqueles que geram riqueza, criam postos de trabalho, garantem estabilidade social, asseguram a sustentabilidade dos outros projectos (aqueles que só geram a tal despesa)? Como tem sido assegurada a sustentabilidade de longo prazo dos concelhos do interior? Em geral, de modo muito deficiente porque essa não é uma verdadeira preocupação de muitos autarcas, tolhidos pela obsessão de querem ficar nas histórias locais como grandes obreiros.
As estimativas demográficas do INE, referentes ao ano de 2005, comprovam o que digo: continuam a dar Abrantes e concelhos limítrofes em acentuada perda demográfica. O país litoraliza-se e a acção dos autarcas para combater essa realidade tem sido, em geral, ineficaz.
Por estas bandas, só Constância consegue suster o ímpeto de perda demográfica e apenas nos anos mais recentes.
Por outras palavras, continuamos a perder gente mas as despesas municipais, pelo contrário, estão sempre a aumentar.
A máquina está criada e tem de ser alimentada. É terrível mas verdade. E inevitável.
A solução, do lado das câmaras municipais, não é “emagrecer”, fazer “downsizing”, recorrer à “reengenharia de processos”. Não, é mais simples e directo: taxar e tarifar sempre pelo máximo: derrama, IMI, IMT, água, saneamento, resíduos sólidos, taxas e licenças municipais. Para alguns autarcas, a lei deveria prever uma derrama de 15% ou 20% e o IMI devia contemplar uma taxa mais elevada. E quando não têm mais dinheiro, queixam-se que o Estado as está a asfixiar e não ajuda em nada.
Já disse em reunião de Câmara, numa declaração de voto recente, que o Dr. Nelson de Carvalho parece o Xerife de Nothingham e nós, os cidadãos, somos os espoliados. Por onde andas, Robin Hood?
A maioria dos autarcas prefere continuar a ignorar o mundo em redor e os actuais desafios competitivos. O conforto dos votos obtidos permite essa postura míope.
Essa miopia estende-se a outros domínios.
Por exemplo, como V.Exa. sabe, o Ministro da Finanças tentou, muito recentemente, meter alguma ordem nas contas das autarquias: nova lei das finanças locais (largamente contestada) e até o impedimento de pessoas reformadas poderem acumular a sua reforma por inteiro (da sua anterior carreira) com a sua avença por inteiro (nas câmaras municipais).
Os autarcas mais “espertos” já encontraram a forma de contornar este “obstáculo”. É assim que é vista esta medida do governo de tentar suster o crescimento da despesa nas autarquias, para além de ser uma afronta à autonomia do poder local.
A solução está pensada: criam-se empresas com os reformados avençados e as câmaras municipais, em lugar de contratarem os cidadãos, individualmente, contratam as empresas criadas por aqueles para beneficiarem dos mesmos serviços; as empresas, por sua vez, pagam aos reformados ex-avençados que decidam empregar-se nessas empresas. Brilhante, não é?
Outra possibilidade é colocar os avençados em associações e aumentar os subsídios a essas associações que, por sua vez, pagam aos ex-avençados.
Garanto que isto não é ficção. É a pura verdade. E está a acontecer já, por aqui.
O problema é que não temos só Abrantes – temos 308 concelhos e, em geral, o pensamento dos autarcas alinha pelo mesmo diapasão.
O Dr. Teixeira dos Santos foi, mais uma vez, fintado. E sê-lo-á de modo transversal aos partidos políticos sempre que afrontar interesses instalados e a lógica corporativa do poder local.
Sabe que mais, Dr. Eurico Heitor Consciência? Ganhou mais um adepto da sua causa, apesar de eu ser autarca e saber que o Estado está a exigir das autarquias aquilo que não é capaz de impor e executar a si próprio.
Com os mais respeitosos cumprimentos,
Pedro Marques
Dr. Eurico Heitor Consciência
Permita-me que lhe escreva esta carta – uma carta aberta.
Tenho lido regularmente os seus textos publicados sobre as autarquias, os gastos que fazem, as reclamações, exigências e choradinhos dos autarcas. Além disso, muito aprecio a forma como escreve, com rigor e humor.
Apesar de ser autarca, cada vez mais acho que os seus escritos são importantes, actuais, incisivos e para serem levados a sério.
Muitos autarcas – a larga maioria dos que conheço, que vão desde o PSD à CDU, passando pelo PS – tem preferido a via fácil de aplicar os dinheiros recebidos em obra que gera votos.
Há excepções, bem o sabemos, infelizmente poucas. Mas, em geral, todos fizeram “inchar” os seus pequenos feudos e têm assegurado reeleições sucessivas.
Mesmo a CCDR (que gere em Lisboa o bolo financeiro que é repartido pelas autarquias da nossa região) vangloria-se da elevada execução dos quadros comunitários de apoio. Quantidade nunca foi sinónimo de qualidade.
O que é preciso é que se gaste depressa e muito. Gastar “bem”, com qualidade e utilidade, à escala do concelho, com critério de auto-sustentabilidade, com planeamento de necessidades efectivas, percebendo as vantagens e inconvenientes, a relação custo-benefício para as comunidades, são características muito relativas. Como resultado, há equipamento que se têm replicado como cogumelos, conduzindo as autarquias para a asfixia.
Os autarcas defendem-se alegando que a melhor avaliação do seu trabalho são os votos do povo e que se este os reelege é porque houve satisfação de necessidades. O cliente satisfeito é fundamental, nas modernas teorias da qualidade.
Há coisas que não se devem dizer, do género “o povo não é clarividente e deixa-se comprar” ou “o povo quer é pão e circo” ou ainda que “o povo não sabe decidir porque não é maioritariamente esclarecido”. Dizer isto cai mal – mas é genericamente verdade (pronto, lá se foram muitos dos eleitores que votaram no projecto que sustentei no ano passado).
As pessoas vivem indiferentes aos milhares de rotundas do país, às centenas de Estádios Municipais e piscinas, aos incontáveis espaços pedonais e de lazer, aos equipamentos culturais cheios do vazio de formação e programação, às centenas de festas gastronómicas e tradicionais dos seus concelhos (todas decalcadas umas das outras), às rotundas com oliveiras replantadas, aos campos de futebol (e de basebol?!?), à festa e farronca contínua. O Estado até dá o exemplo, com os Estádios do Euro, o aeroporto da OTA, o projecto do TGV e outras ambições similares.
Conheço presidentes de Junta cuja actividade anual se resume a manterem os cemitérios das suas terras abertos em horário prolongado, pagar o almoço anual aos velhinhos reformados e umas excursões à praia para os mais carenciados. Escusado será dizer que ganham todos eleições.
Em geral, as pessoas gostam de viver acima das posses e preferem pensar que o dinheiro gasto nessas obras não era seu – era do Estado. Nem elas sabem o que é essa coisa a que chama “Estado” e qual o papel do cidadão nele. Para todos os efeitos, era dinheiro do Estado e, “se não fosse para ali canalizado, provavelmente era estragado em coisas inúteis fora da nossa terra”.
Na realidade, todas estas obras são financiadas com impostos directos e indirectos cobrados junto de cada um de nós, projectando para o futuro milhões de euros (milhões de contos) de despesas correntes e, por isso, partilhando com os cidadãos a responsabilidade da sua execução.
Algumas dessas obras – nem todas! - são importantes mas não podem ser exclusivas.
Onde estão os investimentos reprodutivos, aqueles que geram riqueza, criam postos de trabalho, garantem estabilidade social, asseguram a sustentabilidade dos outros projectos (aqueles que só geram a tal despesa)? Como tem sido assegurada a sustentabilidade de longo prazo dos concelhos do interior? Em geral, de modo muito deficiente porque essa não é uma verdadeira preocupação de muitos autarcas, tolhidos pela obsessão de querem ficar nas histórias locais como grandes obreiros.
As estimativas demográficas do INE, referentes ao ano de 2005, comprovam o que digo: continuam a dar Abrantes e concelhos limítrofes em acentuada perda demográfica. O país litoraliza-se e a acção dos autarcas para combater essa realidade tem sido, em geral, ineficaz.
Por estas bandas, só Constância consegue suster o ímpeto de perda demográfica e apenas nos anos mais recentes.
Por outras palavras, continuamos a perder gente mas as despesas municipais, pelo contrário, estão sempre a aumentar.
A máquina está criada e tem de ser alimentada. É terrível mas verdade. E inevitável.
A solução, do lado das câmaras municipais, não é “emagrecer”, fazer “downsizing”, recorrer à “reengenharia de processos”. Não, é mais simples e directo: taxar e tarifar sempre pelo máximo: derrama, IMI, IMT, água, saneamento, resíduos sólidos, taxas e licenças municipais. Para alguns autarcas, a lei deveria prever uma derrama de 15% ou 20% e o IMI devia contemplar uma taxa mais elevada. E quando não têm mais dinheiro, queixam-se que o Estado as está a asfixiar e não ajuda em nada.
Já disse em reunião de Câmara, numa declaração de voto recente, que o Dr. Nelson de Carvalho parece o Xerife de Nothingham e nós, os cidadãos, somos os espoliados. Por onde andas, Robin Hood?
A maioria dos autarcas prefere continuar a ignorar o mundo em redor e os actuais desafios competitivos. O conforto dos votos obtidos permite essa postura míope.
Essa miopia estende-se a outros domínios.
Por exemplo, como V.Exa. sabe, o Ministro da Finanças tentou, muito recentemente, meter alguma ordem nas contas das autarquias: nova lei das finanças locais (largamente contestada) e até o impedimento de pessoas reformadas poderem acumular a sua reforma por inteiro (da sua anterior carreira) com a sua avença por inteiro (nas câmaras municipais).
Os autarcas mais “espertos” já encontraram a forma de contornar este “obstáculo”. É assim que é vista esta medida do governo de tentar suster o crescimento da despesa nas autarquias, para além de ser uma afronta à autonomia do poder local.
A solução está pensada: criam-se empresas com os reformados avençados e as câmaras municipais, em lugar de contratarem os cidadãos, individualmente, contratam as empresas criadas por aqueles para beneficiarem dos mesmos serviços; as empresas, por sua vez, pagam aos reformados ex-avençados que decidam empregar-se nessas empresas. Brilhante, não é?
Outra possibilidade é colocar os avençados em associações e aumentar os subsídios a essas associações que, por sua vez, pagam aos ex-avençados.
Garanto que isto não é ficção. É a pura verdade. E está a acontecer já, por aqui.
O problema é que não temos só Abrantes – temos 308 concelhos e, em geral, o pensamento dos autarcas alinha pelo mesmo diapasão.
O Dr. Teixeira dos Santos foi, mais uma vez, fintado. E sê-lo-á de modo transversal aos partidos políticos sempre que afrontar interesses instalados e a lógica corporativa do poder local.
Sabe que mais, Dr. Eurico Heitor Consciência? Ganhou mais um adepto da sua causa, apesar de eu ser autarca e saber que o Estado está a exigir das autarquias aquilo que não é capaz de impor e executar a si próprio.
Com os mais respeitosos cumprimentos,
Pedro Marques
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