Confesso que a época do Natal não é das minhas preferidas. Vivo-a alegremente pelos meus filhos mas é uma época em que reina a hipocrisia, os falsos moralismos, em que as pessoas pretendem ser o que, na verdade, nem sempre são.
Há uns dias, um funcionário do Centro de Saúde de Abrantes foi à Bairrada e viu várias crianças andando de bicicleta. O que lhe chamou a atenção não foram os que andavam de bicicleta: foi um que não andava. Quando questionado, o miúdo respondeu que não tem bicicleta. Ao lado, o irmão tinha as sapatilhas sem atacadores e queixava-se de que não podia dar um remate numa bola sem que o calçado lhe voasse para fora dos pés, caindo longe. A mãe já lhe havia prometido que, quando fosse possível, compraria atacadores novos!
Isto acontece em Abrantes, freguesia das Fontes.
E quantos casos haverá mais?
Sem alaridos, os funcionários do Centro de Saúde mobilizaram-se, quotizaram-se, foram ao comércio tradicional e amanhã os meninos vão ter bicicleta nova, pista de carros, carro telecomandado, boneca para a irmã, mais velha, calçado, roupa e um cabaz de Natal, onde não vai faltar o bacalhau, as couves e o azeite.
Nasceu uma onda de solidariedade que fará feliz uma família carenciada e que encheu de satisfação todos aqueles que deram algo, sabendo para onde foi a sua dádiva.
As médias superfícies também aderiram com algo e a generosidade de todos excedeu as nossas expectativas. O que começou de modo voluntário mas pequeno continuou voluntário, mas ganhou dimensão. E nós, todos nós, ficámos mais ricos, dando. Um paradoxo perfeitamente compreensível. Foi um gesto bonito, de pessoas, não de profissionais de uma instituição do Estado. Apesar de a situação ter chegado ao nosso conhecimento por força da nossa actividade assistencial.
Por razões óbvias, a identidade desta família fica por fazer.
Não fizémos alarido, fomos discretos e assim deve ser. Muita gente, felizmente, pratica o bem e a solidariedade sem andar por aí a alardear o que faz. Num dos estabelecimentos onde estávamos a fazer as compras, em plena caixa de pagamento, uma senhora, profissional de saúde - ao que julgo saber - resolveu ali, ao tomar conhecimento do fim a que se destinavam as compras que estávamos a fazer, doar dinheiro e ficar, também ela, realizada e feliz.
Outro caso nos sensibilizou e veio-nos à notícia através do jornal "Abarca". Falo da história de Edmundo Maria Cesário, de 62 anos, que vive em condições indignas, sub-humanas, na cidade de Abrantes, na Avenida da Europa (estranha contradição: qual Europa?). Não falo mais deste assunto, até porque a peça do jornal é elucidativa. Como pode este homem - que não existe, oficialmente - ter passado ao lado da comunidade durante tantos anos?
Estes dois episódios, só por si, servem para justitificar porque razão não gosto, em regra, desta época natalícia.
Porque nos torna piegas, sensíveis, melosos. Porque os problemas da vida não se devem resolver de forma serôdia, apenas nesta época. Porque, ajudando, não estamos a criar bases estruturais sólidas para evitar repetições destes fenómenos de exclusão. Porque estou descrente acerca da forma como o Estado e as instituições procuram (não)dar resposta a problemas semelhantes. Porque me choca saber que, para entrar num Lar, em vez da condição de necessidade e precaridade social, seja mais importante saber se a pessoa candidata "leva" a reforma atrás e a doa à instituição e, adicionalmente, se ainda "entra" com algum "dote" para enriquecer o património das IPSS, assim tipo uma conta a prazo, um terreno ou uma casa.
Tenho de parar de falar nisto. Ainda fico mal disposto.
Nesta época, vale a pena pensar se o Natal é isto que andam para aí a impingir-nos?!?...
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