quarta-feira, 18 de abril de 2007

Novelas & Novelos - Acto 3

Contaram-me uma vez que certo empresário do concelho de Abrantes era bastante avarento. Toda a vida o havia sido. Trabalhava arduamente, de sol a sol, poupava muito, pagava pouco aos seus empregados e colaboradores e vivia num tempo em que o regime permitia “abusos” sobre os trabalhadores (leia-se alguma exploração por via dos baixos salários, elevada disciplina e muita exigência em termos de horários e dias de trabalho efectivos). Os trabalhadores receavam afrontá-lo, alguns tinham-lhe respeito e medo ao mesmo tempo. Nas suas costas, porém, confessavam que não morriam de grandes amores por ele.
Diziam mesmo que era um homem que não dava nada a ninguém. E não dava mesmo nada, ou quase nada, porque tudo o que tinha havia-o obtido à custa do seu labor, do seu empreendedorismo, da sua dedicação, ainda que assente na dita exploração dos seus colaboradores mais directos. Como a maior parte dos pequenos empresários do antigo regime, as suas práticas eram consentidas e os silêncios mitigavam pensamentos contrários. Ao que me contaram ele sabia que não era amado pelos seus trabalhadores, mas nas aparências tudo corria pelo melhor dos mundos. O regime facilitava o surgimento e a sobrevivência deste tipo de empresários. Nem estou a criticar porque era o próprio sistema vigente que permitia a multiplicação desta classe empresarial.
Um certo dia, na sua fábrica, perdeu dois dedos. Logo um empregado mais afoito ganhou coragem e lhe terá dito: “até que enfim que o senhor dá alguma coisa a alguém!”.
Há gente que não dá nada; há gente que partilha. Há ainda aqueles que “dão um chouriço a quem lhe der um porco”.
Vem isto a propósito das medalhas de mérito municipal que este ano vão distinguir, em Abrantes, três personagens ilustres.
Um deles é o Arquitecto Duarte Castelbranco. Homem de grande percurso profissional e académico (formou-se com 20 valores!), ofertou parte do seu trabalho ao Município, sobretudo projectos e trabalhos que foi desenvolvendo ao longo da sua vida. Tem vasta obra física realizada no concelho, em especial na cidade, mas o seu legado é nacional. A sua indigitação recolheu votação unânime na reunião de câmara, por voto secreto. Talvez este reconhecimento até já pudesse ter sido registado no passado.
Outro é o senhor João Estrada. Vai permitir a criação do Museu Ibérico de Arqueologia e Arte, que integrará um Centro de Investigação em Arqueologia. As peças expostas serão definitivas, o que significa que a Fundação Estrada, que o homenageado dirige, coloca as peças para exposição para sempre.
Por fim, o escultor Charters de Almeida, que doou parte do seu espólio artístico ao Município, não sem que antes (ou ao mesmo tempo) o Município lhe compre uma escultura para ser colocada no espaço ribeirinho, no Aquapolis, na margem norte. Dizem que é descendente da família dos Almeidas. Daí a sua ligação a Abrantes.
O que têm em comum os homenageados? Todos deram algo ao Município. Por outras palavras, são homenageados (recebem o chouriço) em troca daquilo que deram (seja meio porco, um porco inteiro ou mesmo uma vara de porcos).
Não está em causa o que deram à comunidade, ao concelho, à cidade de Abrantes. Deram, por certo e essa sua atitude é louvável. Aparentemente serão homenageados pelo que deram ao Município de Abrantes, aquela entidade a que nos habituámos chamar Câmara Municipal de Abrantes (não é a mesma coisa, mas enfim, assim é mais fácil de entender).
É assim a política em Abrantes. É assim que vamos distinguindo os nossos ilustres cidadãos de mérito municipal. Não estou contra os homenageados mas contesto a forma como a maioria gere estas singelas comendas municipais.
Não digo que o reconhecimento que vai ser feito não seja justo. Provavelmente será justo, mais num caso do que noutros. O que digo é que aparenta ser merecedor desse reconhecimento quem dá algo que o Município aceita receber.
Com toda a franqueza, não é fácil aceitar esta mercantilização de um gesto que deveria ser, acima de tudo, de justa homenagem pelo que fizeram em prol da nossa comunidade.
Quantos abrantinos há que deram já tanto de si e não viram o seu amor e apego à terra ser reconhecido?
Posso dar alguns exemplos, correndo mesmo o risco de ser injusto para alguns e até criticado por outros.
Já no passado fiz parte de um grupo que propôs, sem sucesso, o nome de vários abrantinos cujo trabalho político, na sequência do 25 de Abril, justificava o reconhecimento da comunidade: José Vasco (médico e político), Daniel António (comerciante e político) e Elísio Moura (presidente de Junta de Freguesia), este último proposto ainda em vida.
Mas há muitos mais que, em meu entender, por tudo o que já fizeram por Abrantes poderão merecer semelhante distinção: Eurico Heitor Consciência e José Amaral (ambos advogados), Apolinário Marçal (empresário), José da Graça (sacerdote, penso que até já foi distinguido mas não tenho a certeza), Santos Lopes (escultor), António Rodrigues (autarca de Vale das Mós), Fernando Simão (empresário e homem de obra social), entre outros, cada um na sua área, cada qual com a sua profissão, todos com trabalho à vista na nossa comunidade. Há vários homens e mulheres de bons que não deram nada à câmara mas, sentimo-lo, deram à comunidade.
De uma coisa tenho a certeza: nenhum deles precisou de dar obra física ao Município para merecer ser distinguido. O que muitos fizeram, com horas de trabalho oferecidas, literalmente, à comunidade, com sentimento comunitário de altruísmo, de empreendedorismo, de arrojo, de inovação, faz-nos pensar se atribuir medalhas de mérito a três pessoas nas mesmas circunstâncias (“deste-me património, toma lá a medalha”), cheirando mais a mercantilização da “comenda” do que a acto genuíno de reconhecimento, não fará criar a sensação, nos homenageados, de não ser esta a forma que algum dia sonharam (se é que o fizeram algum dia?) de virem a ser homenageados pela cidade de Abrantes.
A atribuição de medalhas de mérito deveria ser um motivo de festa, de alegria, de reconhecimento desprendido da comunidade pelo esforço de alguns para o engrandecimento da nossa comunidade. O que é diferente da apreciação material sobre o património tangível que nos deixam para museus e espaços de exposição.
Mercantilizar as medalhas de mérito corre o risco de diminuir a homenagem que se pretende fazer. E, ao fazê-lo, prestamos um mau serviço à comunidade e aos próprios homenageados. Poderei estar a ser injusto? Talvez.
Mas, afinal, quais os critérios que ainda subsistem para a atribuição da Medalha de Mérito Municipal?
(Disponível em 19.04.2007 na edição impressa de «Primeira Linha»)

1 comentário:

Anónimo disse...

Está aqui um recado para os bloggers de Abrantes
http://blogdozena.blogspot.com/2007_04_15_archive.html#2158657790955779677