quinta-feira, 13 de outubro de 2005

Miguel, o exaurido - Conto de ficção

Miguel vinha exaurido.
As pernas tremiam que nem varas verdes. Nunca havia pensado que poderia assistir a uma cena daquelas.
Sentou-se. Levantou-se. Sentou-se. Voltou a levantar-se. Lavou a cara no bebedouro público onde, a custo, conseguiu afastar os pombos que por ali costumam habitar em dias de calor.
A escola havia-a deixado aos dez anos de idade, quando resolveu partir com os homens dos carrinhos de choque, no final de mais uma Feira Anual. Desde então, nunca mais pegou em livro algum. Mal sabia ler ou escrever, mas em contas de cabeça era um ás, ninguém o conseguia enganar. Talvez por isso ganhou o epíteto de ministro da droga.
Essa era a sua actividade. Comprar e vender, traficar, roubar. Nunca matou e não tomava drogas duras. Sabia que não o poderia fazer, pois isso seria o seu fim. Fumava uns charros, não dispensava a sua ganza.
Nunca esteve preso. Uma vez, de noite, em pleno Inverno, após o início de novo ano, conseguiu fugir por uma vala de esgoto, após uma rusga em Almada. Andou desaparecido durante quase uma semana e, quando surgiu em casa de Matilde, a namorada, ia doente. Esteve internado durante mais de um mês no Hospital, com difteria e tuberculose. Nunca mais foi o mesmo, ficou para sempre franzino, seco de peles e de olhar, sorriso triste e pose deslombada.
Porém, naquela noite, teve de se fazer forte e corajoso.
Entrara em casa de Matilde, como habitualmente, em busca do seu sossego e de um pouco de conforto no regaço da sua amiga de infância, auxiliar num lar de crianças abandonadas. Uma mulher pobre mas honrada, amargurada pelos azares que a vida lhe trouxe mas séria, triste mas digna. Nunca disse a Miguel que uma certa vez, abortou, impedindo que o filho de ambos chegasse a nascer. Estava de esperanças há 8 semanas quando decidiu que o rebento nunca haveria de conhecer este mundo, nem o pai, nem a mãe. Para não ter de cair na mesma vida, na mesma miséria, na mesma desgraça. Fê-lo por amor.
Miguel procurou Matilde mas não a encontrou. Por isso, sentou-se e ligou o televisor. Enrolou mais um charro, que tragou com uma mini e adormeceu ainda antes do final da primeira parte do jogo entre o Benfica e o Sporting, um clássico que não lhe despertou interesse. O seu desinteresse era devido a outros interesses da sua vida.
Quando acordou, pelas quatro da madrugada, estava amarrado a uma cadeira, a casa revolvida e Matilde, em frente de si, enforcada com um bilhete pendurado no vestido e o seio pendurado por fora do vestido rasgado.
Ao longe, Miguel conseguiu ler: “NUNCA MAIS VENDAS DROGA IMPURA. ÉS O PRÓXIMO”. A assinatura era de Cajó, um cliente, que agiu assim zangado com a falta de pureza do ‘cavalo’ que Miguel lhe havia vendido.
Atrás de si, um rastilho consumia-se em direcção a uma botija de gás. E ele amarrado, impotente para se mover, sem força para sair dali.
Conseguiu ir buscar forças onde nunca pensou que elas estariam guardadas e atirou-se para o chão, rastejando em direcção à porta da rua. Estava fechada. Restou-lhe fazer novo esforço e atirar-se da janela.
Caiu do primeiro andar no pavimento de terra batida e a cadeira, partiu-se. Conseguiu fugir mais uns metros e, ao olhar para trás, viu desaparecer num colorido vermelho, amarelo e laranja, toda uma existência, uma vida e conforto.
Correu o mais que pode e foi assim que o encontrei.
Miguel vinha exaurido.