quarta-feira, 24 de maio de 2006

(Mau) Jornalismo por encomenda

Em subtítulo, uma frase categórica: "Economia portuguesa crescerá 1,5% em 2007 graças às exportações e ao investimento".
A capa do jornal remete para o suplemento de "Economia".
Pego neste suplemento e leio um título bem mais comedido, menos espaventoso: "Retoma depende de moderação salarial e da redução do défice".
Pode não parecer mas é o mesmo assunto e a mesma notícia.
No suplemento há 3 ou 4 chamadas: "A OCDE alerta que Portugal corre o risco de ver o seu rendimento afastar-se da média europeia até 2012 se não alterar a política económica seguida no passado", é um deles; "Ameças à recuperação da economia: consolidação orçamental abaixo do projectado; aumentos salariais excessivos", é outra; por fim, "o desemprego, de acordo com a OCDE, vai continuar a subir este ano, iniciando a descida em 2007, quando Portugal estará a crescer 1,5%".
Depois, vou mesmo ler a notícia, de tão confuso que fico. Parece que a manchete optimista tem pouco a ver com o conteúdo da peça e, sobretudo, com o Relatório de Primavera da OCDE.
E leio: "Portugal corre o risco de se manter em divergência face aos países europeus até 2012 se as políticas económicas seguidas até agora se mantiverem inalteradas. Se os esforços de consolidação orçamental ficarem abaixo do esperado e o crescimento dos salários superar o da produtividade, até a retoma moderada antecipada para 2006 e 2007 poderá ficar ameaçada".
Referindo-se ao conteúdo do dito relatório da OCDE, o jornalista Sérgio Aníbal escreve que o mesmo "projecta um crescimen to médio anual de 2% para o período de 2008 a 2012, ainda abaixo dos 2,1% previstos para a Zona Euro no mesmo período". Por outras palavras, deveremos continuar em desfasamento, a ficar mais longe do sonho europeu.
E o relatório vai mais longe ao apontar previsões de défice muito diferentes das do Governo de José Sócrates: défice de 5% do PIB este ano (contra 4,6% previstos pelo Governo) e de 4,5% do PIB em 2007 (contra 3,7% previstos pelo Governo).
Depois olhos para os gráficos. No crescimento médio anual previsto entre 2008 e 2012, a Irlanda lidera (3,6%), seguida da Grécia (3,1%) e da Espanha (2,5%). Todos estes países competiam connosco aquando da nossa entrada. Hoje, estão no pelotão da frente.
No gráfico da variação da dívida pública, Espanha deverá ver a mesma diminuir 15 pontos percentuais do PIB entre 2007 e 2012. A Grécia deverá ver a sua dívida pública diminuir 10 pontos percentuais no mesmo período. A média da Zona Euro será, em previsão, de menos 4 pontos percentuais do PIB. Claro que Portugal (e Itália) está do lado oposto, sendo previsível que a nossa dívida pública aumente 3 pontos percentuais do PIB entre 2007 e 2012.
Podia continuar mas penso que já fui suficientemente explícito.
Uma coisa é a notícia e o conteúdo do relatório da OCDE (negros para o futuro de Portugal), outra é o título do jornal.
É por causa destes fretes e desta falta de rigor que o jornalismo, tal como a política, também tende a perder crédito nos dias de hoje. Felizmente, no jornalismo há gente séria e de rigor - a maioria. Mas este título interessa a quem? Faz o frete a quem? O que estará por detrás deste título desconexo com o conteúdo da respectiva peça jornalística?
Não será talvel alheio a tudo isto o comentário do Ministro da Economia do Governo PS, Manuel Pinho, a este relatório, igualmente inserido no suplemento de Economia do DN: "A OCDE baseou as suas previsões presentes neste relatório nos indicadores avançados e em alguns dados concretos que estavam disponíveis há algumas semanas atrás. A verdade é que para Portugal se ficaram a conhecer dois dados muito importantes na última semana e que a OCDE não incluiu: o desemprego e o comércio internacional".
Faz lembrar a história das sondagens: só são boas quando nos são favoráveis; caso contrário, são falsas, não traduzem a realidade e resultam de manipulação de dados.
Até porque o desemprego, como sabemos, reduziu cosmeticamente mas não em concreto; e no relatório está bem explícito um crescimento previsível das exportações da ordem dos 5,6% já em 2007.
Por isso, a manchete está em perfeita sintonia com a vontade de propaganda do Governo; o conteúdo da notícia, o relatório da OCDE e a real situação que Portugal vive é que não. Mas isso parece não ser importante.

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